Covid x esgotamento mental: por que não aguentamos mais?

Cansaço, pressão e medo ainda ameaçam saúde mental, quase um ano depois da pandemia
Reprodução

Há dez meses trabalhando na linha de frente contra o coronavírus, o médico intensivista Miguel Rogério de Melo perdeu as contas do número de pessoas que viu morrer por causa da doença. “Trabalhar em UTI-covid não é como trabalhar numa UTI comum. A falta de recursos e de material deixa tudo muito desgastante. Em vários momentos da pandemia faltam coisas básicas. E não estou falando nem de aparelhos caros. Faltaram sedativos e até medicações para manter a pressão arterial do paciente em níveis vitais”, relata o profissional de saúde, que trabalha atualmente na cidade de Mossoró, no interior do Rio Grande do Norte, mas esteve em diversos hospitais do Estado.

Como o Brasil não tem mão de obra suficiente para atuar em Unidades de Terapia Intensiva com essa especialização, Miguel se viu obrigado a continuar trabalhando, mesmo diante de tanto estresse. “Por vezes até pensei em desistir porque não estava vendo resultado. Mas continuei, senão seria pior. Como a demanda de pacientes estava alta e, como a UTI-covid precisa de mão de obra específica, acabei ficando mesmo sem materiais básicos para tratar os doentes. Eu ia trabalhar e saia destruído do hospital. Uma situação desesperadora”, desabafa.

Miguel temia contrair covid-19 e, acima de tudo, transmitir a doença aos familiares. “Essa era a minha maior preocupação. Infelizmente, por estar sempre me expondo, acabei me contaminando, mas tive a forma assintomática e consegui me isolar, longe dos familiares, e evitar que prejudicasse as pessoas que eu amo”, relembra.

Em setembro, quando o número de casos estava aparentemente controlado, o médico intensivista foi ficando mais tranquilo. Porém, com as festas de fim de ano e as férias, momentos em que muita gente decidiu promover aglomerações, e o recrudescimento da doença, as coisas voltaram a piorar.

Agora, o esgotamento mental de Miguel Rogério de Melo é em relação à nova variante, inicialmente registrada no Amazonas. “Quando vi o que está acontecendo em Manaus, fiquei realmente preocupado. Se isso acontecer aqui (Rio Grande do Norte), a gente não tem estrutura! A única coisa que me deixa relativamente aliviado é a vacina que, a despeito das fake news, tem se mostrado bastante eficaz. Em Israel, com grande parte da população imunizada, os efeitos positivos já estão sendo sentidos”, diz.

Na análise do psicanalista Gustavo Alarcão, integrante do Núcleo de Psicanálise do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria da USP (IPq-HC), vivemos uma dose enorme de frustração, que requer paciência e muita tolerância: “O prolongamento da situação implica na manutenção das dificuldades que passam a pesar cada vez mais. Qual o fim? Que fim? Qual o significado de tudo isso? Como se adaptar mais e mais? São questões que rondam permanentemente”.

Mesmo sem estarmos na linha de frente contra a covid-19, cada um de nós jamais imaginou que, a essa altura do campeonato, ainda estaríamos em sérios riscos. Em quase um ano de pandemia, o Brasil chegou a 250 mil mortes, na pior fase da doença em território nacional. Difícil manter o otimismo diante dos números.

Mais ainda desafiador é manter o equilíbrio emocional. Esgotamento mental é o termo mencionado pela professora Luciana Aparecida de Moraes Correa. Ela trabalha em uma escola do município de Poços de Caldas, no Sul de Minas Gerais. Em 2020, os educadores da cidade começaram as aulas em maio e foram até o fim do ano. Depois de férias de 30 dias, Luciana voltou ao trabalho. “E já estou super preocupada. Em dezembro, eu estava simplesmente um bagaço. Nesse ano, que já começamos desde fevereiro, estou preocupada em como ficarei até julho. O governo liberou as aulas presenciais, mas ninguém mandou voltar porque não dá, o número de casos está aumentando. Além disso, não tem todos os EPIs (equipamentos de proteção) para os professores, os alunos. Como vai ser o distanciamento ou o revezamento das crianças? Tem tantas questões que estão sendo levantadas e que geram ansiedade”, diz.

A neuropsiquiatra Gesika Amorim relata que houve um aumento considerável dos casos de transtornos de ansiedade e do sono desde o início da pandemia. “Tivemos também muitos casos de depressão que acabaram evoluindo para transtornos mais graves, como Transtornos do Pânico, TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) e transtornos psicóticos. Sem falar do aumento do consumo de álcool e outras drogas. Este é o panorama que estamos vendo neste momento”, avalia.

Em dezembro, Luciana sentiu no corpo e na mente os reflexos de incessantes aulas virtuais, a dificuldade de comunicação com crianças que não têm acesso à internet, a necessidade de auxiliar outros colegas a aprenderem a usar as ferramentas digitais de transmissão de vídeo e ao próprio fato de adaptar os conteúdos presenciais para o online. “Comecei a ter insônia. Eu deitava e ficava imaginando tudo o que eu tinha que fazer para o dia seguinte e pensava se aquelas horas seriam suficientes. E nunca eram. Muitos desses trabalhos me tomavam um tempo enorme, justamente por não ter a prática do ensino online. Ficava ansiosa em cumprir os prazos. Não conseguia render e isso me trazia uma sensação de frustração. Me sentia uma fracassada”, lamenta.

A professora também relata sintomas como irritabilidade, cansaço e problemas no intestino por não conseguir se alimentar adequadamente. Como se não bastasse toda a situação, Luciana e demais educadores no Brasil estão sendo criticados na internet por pessoas que alegam que “os professores ficaram um ano sem trabalhar” ou que “no lugar de dar aulas, estão viajando”. São publicações que normalmente generalizam comportamentos.

“Uma informação totalmente sem embasamento, atacando professores e dizendo que nós não estamos trabalhando. Inclusive com ataques nas redes sociais aqui de Poços de Caldas. Os casos foram parar no sindicato e a secretaria de educação teve de se posicionar sobre esse tipo de ofensa aos profissionais de educação”, conta. Uma profissão, que há anos vem sendo desvalorizada no País, não precisaria de mais essa agressão psicológica, sobretudo em meio à pandemia do novo coronavírus.

Esgotamento mental e seus efeitos
Nós estamos exaustos diante da pandemia de covid-19 porque passamos do limite da nossa capacidade de adaptação, para a neuropsiquiatra Gesika Amorim: “Difícil alcançar a resiliência. Fomos sacados da nossa estabilidade emocional de uma forma abrupta e ainda não a resgatamos. Continuamos tendo de nos adaptar às diferentes adversidades a cada dia”.

A velocidade das notícias e as constantes mudanças no quadro geral da doença fazem com que as pessoas se esforcem em busca de sobrevivência. E essa pressão pode nos levar a um alto nível de estresse, um quadro de esgotamento psíquico e físico, inclusive com casos de hipertensão arterial, diabete, agravamento de doenças crônicas.

O psicanalista Gustavo Alarcão lembra que muitos não puderam manter o isolamento social e precisaram se arriscar. “Ao mesmo tempo, aqueles que conseguiram ficar em casa estão se exaurindo. Acabam as ideias, a criatividade, sobrevém tristeza e também raiva diante das impotências e dos limites”.

O especialista dá um exemplo prático sobre a sensação de exaustão. “Faça um teste simples: tente segurar um peso qualquer nas mãos. Você verá que será insustentável. Fisicamente, nossos limites são mais claros, quando o músculo se exaure, o peso cai. Psicologicamente, eles não são tão nítidos”.

Dicas para cuidar da saúde mental em meio à pandemia
Gustavo Alarcão ressalta que, se você chegou ao limite, deve assumir, encarar e se respeitar: “Não há mágica que consiga me fazer ir além. É importante dar um passo atrás, dividir e compartilhar os pesos e recuperar o significado da vida, se possível for. Outras vezes precisamos nos reconfigurar. Temos dificuldade em aceitar nossas fragilidades, carências e necessidades. Gostamos mais de nos desafiar, de bater metas e recordes. Muitas vezes o esgotamento vem de uma negação da própria realidade, literalmente falando. Não somos máquinas e não basta acionar botões e pronto”.

Gesika Amorim dá algumas dicas práticas para manter o equilíbrio, como assistir algo que te dê prazer, ter bons momentos com amigos e família, e usar a internet para consumir cultura. “Manter uma boa alimentação, atividade física, meditação, oração, reiki, qualquer atividade relaxante ou hobby que te faça desacelerar. É necessário se auto regular e, principalmente, nunca ter vergonha de pedir ajuda. Ao menor sinal de necessidade, procure um médico e psicoterapia. Busque um psicólogo, um grupo de apoio e o mais importante: precocemente”.

Diminuir o ritmo não fará de você uma pessoa frágil ou perdedora aos olhos do outro. Seja menos exigente e mais generoso consigo. Expressar e compreender o que está sentindo, contextualizando sua própria realidade, pode ser um caminho mais leve.

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