Desamparados pelo governo, indígenas Kuikoro venceram a pandemia com base na ciência

Os Kuikuiro, no Alto Xingu, usaram sua experiência com um surto de sarampo e fizeram seu plano de combate à pandemia com base na ciência.
oto: Associação Aikax / BBC News Brasil

Enquanto o Brasil vive seu pior momento da pandemia, uma pequena comunidade indígena no alto Xingu conseguiu vencer a covid-19 mesmo sem amparo do governo federal ou das autoridades locais.

No ano passado, enquanto a gravidade da pandemia era negada pelo governo e subestimada por muitas pessoas no resto do Brasil, os indígenas Kuikuro fizeram lockdown em suas aldeias, fizeram vaquinhas para arrecadar dinheiro para suprimentos médicos e usaram sua experiência com um surto de sarampo para enfrentar o coronavírus.

Mais de 45 mil casos de covid-19 e 622 mortes foram registrados entre indígenas no Brasil, de acordo com dados oficiais da Sesai (a secretaria de saúde indígena). Mas a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) afirma que os números são bem mais altos e contabilizou 1022 mortes e pelo menos 51 mil casos até terça (23/03).

No entanto, entre os cerca de 900 Kuikuro que vivem em oito aldeias no alto Xingu, não houve mortes, e apenas 160 pessoas foram infectadas. E agora todas as pessoas foram vacinadas.

O sucesso é um contraste em relação ao resto do país — o número de mortos já ultrapassou os 300 mil e a média móvel de mortes nos últimos dias chegoou a ultrapassar 3 mil em um único dia.

O líder indígena Yanamá Kuikuro deu um depoimento à BBC sobre como a comunidade conseguiu enfrentar o vírus com sucesso:

Yanamá Kuikuro, presidente da Associação Indigena Kuikuro do Alto Xingu (Aikax)

“A aldeia Ipatse, onde estou, é a aldeia principal. Somente aqui tem 390 pessoas, incluindo as crianças. Aqui a nossa fala e a nossa cultura estão vivas. Apesar que entrou um pouco de cultura não-indígena e a internet já está aqui, nem por isso esquecemos a nossa cultura. Essa tecnologia que entrou facilitou a nossa comunicação.

No ano passado eu viajei a Brasília e vi um aumento de casos de covid no Brasil inteiro. Quando eu cheguei na aldeia, conversei com o meu irmão Afukaká Kuikuro, cacique da aldeia Ipatse, que também já estava acompanhando esse alastramento do vírus. Ele também entendeu o perigo.

Reunimos várias vezes a comunidade no centro da aldeia antes de chegar o vírus aqui. O que a gente pensou junto com a comunidade: como que a gente pode enfrentar esse novo vírus que está chegando? Quem pode nos ajudar?

Quando eu era criança, o meu pai contava que teve epidemia de sarampo aqui no Xingu e morreram muitas pessoas. Os Kalapalo, os Kamaiurás, muitos povos do Alto Xingu morreram. Então quando a gente viu esse vírus novo, os anciões logo lembraram disso. Quando a gente viu no noticiário da televisão que o vírus estava matando muitas pessoas, pensamos: ‘A gente tem que se organizar, tem que fazer lockdown’.

A gente pensou no governo. Mas se a gente pedisse apoio para o governo, não ia chegar logo, não ia acontecer. E o que é que a gente fez, nós mesmos? Primeiro passo: construímos uma casa de isolamento.

Ao mesmo tempo, pensamos também em procurar parcerias. Juntamos pesquisadores de universidades, por exemplo, o Museu Paraense Emílio Goeldi, a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a organização People’s Palace Project no Reino Unido e também a Pennywise Foundation dos Estados Unidos.

Eles fizeram uma campanha e arrecadaram R$ 200 mil. Com esse dinheiro, compramos cilindros de oxigênio e concentrador de oxigênio. Compramos remédios e camas para os pacientes se internarem. Contratamos uma médica e um enfermeiro. Isso foi tudo antes de o vírus chegar aqui.

O governo estava dando esse ‘Kit Covid’ e a nossa organização aqui não aceitou, porque não tem estudo [comprovando a eficácia]. A gente fez o nosso protocolo, diferente do protocolo do governo.

Teve umas pessoas da comunidade que ficaram com um pouco de raiva de mim porque eu estava falando todo dia de lockdown, falando para não sair para fora (da aldeia), para usar máscara, para higienizar [as mãos e objetos]. Muita gente ficou com raiva de mim, porque pensavam que eu estava mentindo. Aí depois que chegou esse vírus, eles viram realmente e acreditaram.

O povo Kalapalo pegou esse vírus primeiro. Foi bem grave, levaram algumas pessoas para fora [do território indígena] para entubar. Eles relataram casos de médico destratando indígenas dentro de hospital. Eles mandavam áudios para nós, dizendo que o hospital não estava cuidando bem, não estava dando alimentação.

Então a gente decidiu: quando o vírus chegar aqui na nossa aldeia, se a pessoa for infectada, vamos ter de hospitalizar aqui mesmo na aldeia.

No mês de junho, julho, a covid entrou aqui. Uns pacientes viajaram ao município de Gaúcha do Norte e de lá chegaram infectados. O médico daqui fez o teste rápido e deu positivo. Aí a família toda fez o isolamento domiciliar.

Aproximadamente 160 pessoas foram infectadas nesta aldeia e todas se isolaram nas suas casas. A nossa organização já tinha comprado alimentação de fora da cidade, e também preparamos a nossa comida para levar para aquelas pessoas que estavam isoladas. A equipe de saúde que estava acompanhando aquelas famílias levava a comida pra eles.

Algumas pessoas foram tratadas no hospital que a gente improvisou aqui, mas ninguém precisou receber oxigênio. A gente usou medicina tradicional para ajudar os medicamentos industrializados. O pajé ajudou o trabalho do médico que nós contratamos.

A gente faz uma campanha nas redes sociais e pela internet e levantamos R$ 44 mil. Com esse dinheiro, compramos cestas básicas e coisas que nós aqui já nos acostumamos a comprar na cidade: anzóis, fósforos, linhas de pesca, alguns alimentos das cidades, combustível para o nosso gerador, para motor de popa.

Eu e o meu tesoureiro da associação Aikax fazíamos a compra daqui mesmo e o frete trazia pra nós aqui na aldeia. Claro que era tudo higienizado antes de entrar na aldeia.

O Ministério da Saúde informou que ia priorizar a população indígena, os profissionais da saúde e os quilombolas no processo de vacinação. Algumas vacinas chegaram de avião, outras de carro, outras de barco.

Com a chegada da vacina, teve muita mentira, muitas fake news, muitas pessoas falando para a população indígena que não era para tomar a vacina. Alguns indígenas estavam acreditando nisso. Só que eu e meu cacique, Afukaká, não acreditamos isso. A gente conversou muito com a comunidade para não acreditar em fake news.

Eu e Afukaká já tínhamos recebido a primeira dose da vacina [CoronaVac]. Fomos vacinados no Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu [em Canarana] e as fotos foram colocadas no site, para ser um exemplo para o povo xinguano tomar a vacina. A segunda dose foi na aldeia – todos aqui já foram vacinados.

Quando a vacina chegou, eu lembrei daquela história que meu pai contava. O sarampo matou muitas pessoas, anciões que tinham a história e a cultura [dos seus povos]. Depois da vacina, não teve mais mortalidade.

Quando a gente viu a covid-19, eu pensei, “Nossa, se morrerem todos os anciões e a liderança, não vai ter mais a nossa cultura”.

A vacina ajudou. Hoje as crianças estão crescendo sem aquelas doenças que tinham na época do meu pai: sarampo, coqueluche, varicela. Hoje as crianças estão crescendo bem. Hoje a vacina chega aqui para prevenir gripes, proteger os idosos e as crianças.

Então quando chegou a vacina contra a covid-19 eu lembrei de tudo isso, e pensei, talvez a vacina CoronaVac vai melhorar (a situação) e não vai ter mortalidade na população brasileira.

A nossa luta aqui não acabou ainda. O Mato Grosso está em vermelho, as UTIs estão em colapso, estão aumentando [os casos de covid] e descobriram aquela variante [P.1] do vírus, que está matando mais jovens agora. A gente está vendo que está morrendo muito jovem por essa variedade desse vírus.

A minha preocupação é que o hospital da cidade não está atendendo bem a população indígena. Então eu estou muito preocupado. Como é que a gente pode se organizar de novo? Eu sei que é muito difícil instalar um mini-hospital aqui.

Mas a gente quer se tratar aqui mesmo, não se tratar fora, porque muita gente está morrendo no hospital. Até agora, com os que foram infectados pelo vírus na aldeia, nós conseguimos vencer o vírus aqui mesmo.”

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