Exploração das diversas zonas erógenas promete gerar intensa fonte de prazer
“O amor malfeito depressa/Fazer a barba e partir”. Esses versos, escritos por Chico Buarque em 1971, são capazes de gerar tanta identificação que foram parar num conto em forma de carta do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), que completava: “Vontade de não me contentar com o pouco”.
É justamente para ir além do óbvio e da mediocridade que uma prática sexual conhecida como “gouinage”, termo francês usado para designar o sexo sem penetração, tem ganhado cada vez mais relevância e conquistado adeptos pelo mundo.
“A sexualidade é dinâmica e fluida. Sinceramente, acho um desperdício de recursos limitá-la aos genitais. Infelizmente, até nosso modo de viver favorece o engessamento do sexo: as pessoas trabalham o dia todo, depois, vão lá rapidinho, só para cumprir o protocolo”, observa a psicóloga e sexóloga Leni Oliveira.
Numa sociedade que se habituou a focalizar o sexo apenas no ato da penetração, a ideia ampla de toques, cheiros, mordidas e beijos tende a ser considerada como “preliminar”. Por isso, é necessária uma diferenciação: no gouinage, o leque de estímulos corporais não se limita à masturbação ou ao sexo oral.
Eles precisam estar ligados a uma entrega íntima dos parceiros, capazes de obter prazer neste jogo erótico que libera a exploração de todos os sentidos do corpo humano, não apenas o tato, e que, inclusive, pode levar ao orgasmo sem a dependência da ejaculação.
Feminina
Inicialmente circunscrita ao “contexto de relações homoafetivas entre mulheres”, a prática evoluiu e, segundo Leni, “vai muito além disso”, sendo utilizada “para relações que priorizam o prazer na exploração de outros pontos erógenos, sem a fixação nos genitais”. Orelhas, pescoço, mamilos, abdômen, virilha, coxas e pés são alguns exemplos.
Neste sentido, a sexóloga deixa transparecer a necessidade de que uma perspectiva mais feminina passe a preponderar em relações notadamente marcadas por uma visão de mundo machista e patriarcal, independentemente do gênero dos envolvidos.
“Com a revolução sexual feminina, o sexo deixa de ser apenas para a reprodução e se torna fonte de prazer. O clitóris favorece esta busca, já que exige mais estímulos para alcançar a resposta sexual. As mulheres também são mais estimuladas socialmente a explorar seus sentimentos e sensações. O culto ao pênis ainda atrapalha o desenvolvimento da sexualidade masculina”, aponta a entrevistada.
“A relação sexual promove prazer e alívio. É algo físico que não exige muito além de tesão e oportunidade para acontecer. A intimidade exige entrega, que expõe nossas vulnerabilidades e das nossas parcerias. Exige um esforço maior em se abrir para o outro e permitir ser visto”, compara Leni. “Não acredito que uma coisa é melhor do que a outra, mas poder vivenciar ambas, tanto o sexo quanto a intimidade, seria fantástico”.
Entrega
Porém, ela admite que “aprendemos a vida toda que temos que esconder nossas vulnerabilidades”. “Para recuperarmos essa ‘sensualidade’, é preciso poder falar sobre sexualidade com naturalidade em todos os lugares. A sensualidade não é natural, é construída culturalmente”, complementa.
Essa barreira a ser ultrapassada apresenta, como constata a sexóloga, uma dificuldade de origem: o fato de se tratar de uma questão cultural, ou seja, que está arraigada na sociedade há, pelo menos, séculos. O famoso “sempre foi assim” que os pais ensinaram aos filhos; as mães, às filhas; os avós, aos netos, e assim sucessivamente.
De acordo com Leni, “amor e prazer nos relacionamentos é uma invenção relativamente recente”. “O sexo no casamento visava apenas à procriação e manutenção da família”. Quem se desviasse desse rumo, cuja flecha (destituída da graça do cupido) era apontada inevitavelmente para as mulheres, caía logo em desgraça, sendo taxado e agredido pela discriminação vigente.
“Era esperado que as mulheres não tivessem prazer no sexo, elas tinham que esconder caso acontecesse. Só as ‘putas’ gostavam de sexo”, sublinha a especialista. Novamente, uma música de Chico Buarque nos ajuda a refletir sobre esse cenário, com a provocativa “Geni e o Zepelim”, história de uma prostituta estigmatizada que é alvo da ira local. Lançada em 1979, a canção integrou a “Ópera do Malandro”.
Tabu
Decorrido tanto tempo, Leni salienta que a contemporaneidade tem procurado dar respostas mais satisfatórias às necessidades afetivas das pessoas, numa luta contra o tabu que soma avanços e resistências.
“Compreender essa mudança social é extremamente importante. A definição ‘ativo’ e ‘passivo’ fala sobre uma relação de poder entre o que penetra e o que é penetrado. Se o objetivo muda, e o prazer, a parceria e o amor entram nessa conta, não tem mais sentido fixar o sexo em uma ‘hierarquia’ social. O prazer é troca, aos casais é necessário fazer ajustes que visem ao bem-estar de ambos. Infelizmente, isso ainda é tabu, mas está mudando”, sustenta.
Leni acredita que “repensar a forma que fazemos sexo também é repensar a própria vida”. “As pessoas não aguentam mais tanta desconexão consigo mesmas. A essência do ser humano busca incessantemente este retorno para si e para as outras pessoas”.
Se não existe uma fórmula mágica ou uma receita pronta para isso, certo é que os cotidianos relatos de insatisfação nas relações sexuais e matrimoniais indicam que não temos privilegiado as opções mais saudáveis.
“Para que haja mudança, é preciso desejar genuinamente o encontro. Seja de uma noite ou de uma vida. Trabalhe suas questões pessoais, seus medos e ansiedades. Não se deixe pressionar por expectativas externas, vá para uma relação apenas se desejar realmente. Desenvolva uma visão saudável sobre o sexo, sem preconceitos ou machismo”, orienta.
Por fim, a sexóloga ataca os malefícios de outra cultura: a da mercantilização do sexo. “E abandone a pornografia como referencial sexual, ela não é feita para as pessoas, é feita para as câmeras, e sexo na vida real não acontece daquela forma. É muita performance e pouco prazer e conexão”, arremata, com dicas que, no futuro, quem sabe vão embasar uma tese que possibilite uma vida mais plena à toda humanidade.
Por Raphael Vidigal Aroeira