SÃO PAULO, SP (UOL-FOLHAPRESS) – No auge da pandemia de Covid-19 no Brasil, com mais de 358 mil mortes registradas e média de 3 mil óbitos por dia, o futebol conta com lobby importante para seguir o seu calendário: os jogadores são a favor da realização das partidas, em sua maioria. Principalmente em razão da questão financeira, por temor de ficar sem salários.
Para os atletas, também, é melhor jogar do que ficar só treinando ou, pior, confinado em casa. No entanto, nas avaliações do médico cardiologista Nabil Ghorayeb e do médico e neurocientista Miguel Nicolelis, existe outro fator preponderante para que os jogadores aceitem ir a campo: o desconhecimento sobre os riscos do novo coronavírus, principalmente no que diz respeito às sequelas pós-covid.
“Os atletas não dão bola para a covid porque são, em sua maioria, jovens muito bem preparados fisicamente. E porque, quando pegam, geralmente têm sintomas leves, similares aos de um resfriado. Mas eles podem desenvolver complicações, como arritmias cardíacas, lesões pulmonares mais duradouras, AVC”, alerta Ghorayeb, cardiologista do Instituto do Coração, que geralmente faz os exames de pré-temporada dos jogadores dos clubes da capital paulista.
No final do mês passado, um estudo realizado pela USP revelou que o índice de jogadores contaminados pelo novo coronavírus entre os que atuaram nos campeonatos da Federação Paulista de Futebol na temporada 2020 foi de 11,7%, patamar semelhante ao de profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à pandemia.
Na esteira destes dados, e com o número de mortes subindo diariamente, o governo de São Paulo decidiu restringir atividades no Estado, o que culminou com paralisação do Paulistão por 26 dias – as Séries A2 e A3 ainda não retornaram.
Para que o futebol fosse retomado, o Ministério Público de São Paulo fez algumas exigências. A principal foi a adoção da testagem de antígeno antes de cada partida nas delegações. Pelo protocolo aprovado, o teste tem de ser feito na manhã do dia do jogo, no quarto de cada atleta, antes do café da manhã. Assim, quem testar positivo já pode ficar isolado até receber instruções dos clubes. Além disso, toda a delegação fará exame RT-PCR em intervalos máximos de três dias. Para Miguel Nicolelis, porém, essa é uma medida inócua.
“Ter 11,7% de casos entre os jogadores é muito alto. Não existe protocolo sanitário que exija só testagem. É como jogar futebol sem lei do impedimento. Pode testar todo dia que não estará seguro. Os jogadores não sabem os riscos que eles correm, os riscos crônicos, doenças pulmonares. Falei com um jogador que jogou por grandes times e ele não sabia dos riscos”, resumiu Nicolelis, ex-coordenador do comitê do Nordeste de combate à pandemia.
Casos no exterior viram alerta
Embora a incidência de problemas cardíacos seja pequena em atletas, aproximadamente 1%, como sugerem estudos, um caso na Alemanha chamou a atenção. Janik Möser, defensor da equipe de hóquei alemã Wolfsburg Grizzlys, foi diagnosticado com covid-19 em outubro do ano passado.
Pouco menos de um mês depois, ele desenvolveu uma miocardite, inflamação do músculo do coração, o miocárdio, por causa do coronavírus. Somente em março deste ano o atleta pode voltar a jogar.
No Japão, no ano passado, o lutador de sumô Kiyotaka Suetake, de 28 anos, morreu por complicações após a covid. Campeão olímpico em Londres 2012 e prata na Rio 2016, o sul-africano Cameron Van Der Burgh disse que o coronavírus foi “de longe o pior vírus que ele já enfrentou” e que levou quase três semanas para se recuperar e se sentir totalmente de volta ao normal.
“O atleta tem que passar com alguém que conheça as alterações provocadas pelo esporte. Acompanhar esses atletas que vão ter alteração durante o treinamento, para prevenir que o excesso de treinamento, uma coisa que pode ocorrer pós-Covid, não prejudique o atleta, porque a combinação de excesso de treino e baixa imunidade pode gerar uma miocardite”, explicou o cardiologista Nabil Ghorayeb.
No Canadá, a equipe de hóquei Vancouver Canucks apresentou em uma semana 25 casos de covid, entre atletas e membros da franquia, ligando o alerta para evitar novos surtos nas ligas profissionais americanas de esporte.
“É o maior desastre humanitário da história do Brasil. Somos uma colônia de leprosos flutuante. Não caiu a ficha das pessoas. Podemos ter 500 mil mortos no Brasil até o final de junho. E se não tomar cuidado, passa o número de mortes dos Estados Unidos. Enquanto isso, o futebol continua achando caminhos, alternativas, para ser disputado quando a situação ainda está crítica. Nem mesmo as pessoas que estão vacinadas estão 100% imunizadas. Não pode gerar aglomerações de forma alguma. E o futebol gera aglomeração em múltiplos níveis”, finalizou Nicolelis.