Mães corujas usam as redes sociais para exaltar qualquer feito de seus filhos pequenos. Um desenho, a primeira palavra escrita, o crescimento de um dente e o gol marcado no campinho improvisado na rua.
Bárbara Pastana via nessas cenas cotidianas protagonizadas pelo filho, de sete anos, a oportunidade de naturalizar na internet uma configuração familiar ainda bombardeada por preconceitos no Brasil.
Travesti e ativista pelos direitos humanos, Pastana é conhecida como a “Dama de Ferro do Pará”. A referência faz sentido.
Expulsa de casa aos 13 anos devido à sua identidade de gênero, ajudou a estruturar o movimento LGBTQIA+ no estado da região Norte, sobreviveu a um atentado e superou as estatísticas que pesam contra as travestis.
Sem revelar a idade, Pastana diz ter bem mais de 35 anos, a expectativa média de vida para pessoas transgênero no país, segundo organizações que representam essa parcela da população.
Mas há um mês, a estudante de Serviço Social se viu novamente ameaçada ao mostrar uma cena caseira do filho que acabou considerada por muitos como um crime. O fato exposto nas redes sociais fez Pastana perder a guarda do menino, o emprego e ser alvo de haters que desejaram a sua morte.
Pela primeira vez em sete anos, Pastana não comemorará o Dia das Mães como planejava neste domingo (9). “Será o dia mais triste da minha vida”, diz. “Nem tenho lágrimas para derramar.”
Para entender essa história é preciso voltar ao dia 3 de abril em uma das ruas estreitas do bairro Campina do Icoaraci, em Belém, a capital do Pará. É lá que a ativista mora com a mãe, de 72 anos, e mantinha protegido o filho, cuja identidade será preservada nesta reportagem.
Pastana conta que na tarde daquele sábado quente e de pandemia de Covid-19 se sentou no pátio de casa para tomar uma fresca ao lado da mãe e do garoto. E resolveu fazer uma coisa diferente.
Usou em si uma peruca cujos cabelos volumosos e repicados alcançavam a altura de seus ombros. “Eles começaram a rir de mim na hora.”
Dona de um vasto acervo de perucas, muitas delas usadas em edições da Parada do Orgulho LGBT de Belém, a ativista colocou adereço no filho, para ver “se ele continuaria rindo da situação”.
Mas o menino chorou, e tudo foi gravado e publicado pela própria Pastana em suas redes sociais. Na legenda, ela escreveu: “kkk ele fica louco quando quero pentear minhas perucas e uso a cabeça dele como molde kkkkkk”.
A mãe viu no ato apenas “uma brincadeira” já que o menino não parava de rir quando ela usava o acessório. “Coloquei nele sem nenhuma intenção de prejudicá-lo.”
O vídeo caiu no tribunal da internet, e Pastana foi acusada de querer mudar a orientação sexual do menino.
O deputado federal Éder Mauro (PSD-PA), líder da Bancada da Bala na região Norte, escreveu no Twitter que a ativista “obrigou o seu filho, ainda criança, a usar perucas contra a sua vontade”.
Um internauta que disse que o menino corria riscos e poderia repetir a sina de Rhuan Maycon, 9, que foi esfaqueado e teve o corpo esquartejado pela mãe e a mulher dela, em 2019, no Distrito Federal.
O vídeo virou motivo de denúncia encaminhada ao Ministério Público e ao Conselho Tutelar. Três dias depois, o garoto foi retirado da casa da ativista e levado para viver com o tio, um pastor evangélico.
Segunda a denúncia, Pastana teria descumprido o artigo 232 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ao “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento”.
Quem é flagrado nessa situação, segundo o artigo do ECA, pode ser condenado a cumprir uma pena de seis meses a dois anos de prisão.
Pastana teve o primeiro contato com o filho quando ele tinha dois dias de vida, em novembro de 2013. Nascido prematuro, foi abandonado pelo pai e morava com a mãe biológica sob péssimas condições num cubículo –junto de outros três irmãos.
Doente, o garoto foi resgatado pela ativista, que recebeu o convite da mãe biológica para registrá-lo. “Eu não pensei duas vezes porque meu sonho sempre foi ter um filho”, diz.
Sem ter feito a retificação de seu nome e seu gênero nos documentos pessoais, a travesti acabou registrando o garoto como pai.
O menino a chama de mãe e, segundo a ativista, nunca teve problemas com a sua identidade de gênero. “Essa geração já nasce com o coração aberto para aceitar o outro. Mãe é quem cria”, diz.
Mas Pastana vê outras motivações no seu caso.
Ela ingressou na administração pública na gestão do prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL), eleito em 2020. Foi alçada a gestora da Casa Dia, que presta atendimentos de saúde às pessoas com HIV. “É um cargo muito visado”.
Após os ataques recebidos, pediu exoneração da função para se ver livre da perseguição política. “Mas vi muita transfobia.” Disso, diz, não escapou até agora. “É como se eu fosse julgada incapaz de criar meu filho só por ser uma travesti.”
Pastana reviu o filho e chorou. “Ele está magro, largado e não está estudando”, afirma. “A casa onde ele está não oferece estrutura nem para a família que já estava lá.”
O defensor público Carlos Eduardo Barros da Silva vê a separação forçada entre a criança e a ativista como uma decisão precipitada com motivação transfóbica.
“É uma militante trans de um partido de esquerda que enfrenta uma sociedade conservadora que ainda não entende as diferentes configurações de família”, disse.
No último dia 4, o defensor ingressou na Justiça com um pedido de liminar para devolver a guarda da criança a Pastana. Ele também aguarda a finalização de um relatório social sobre como o garoto era tratado quando estava sob os cuidados da ativista, que será inserido no processo.
Caberá à juíza Rubilene Silva Rosário, titular da 1ª Vara da Infância de Belém, definir o futuro do menino, que também deverá ser ouvido. A reportagem procurou o Ministério Público e a Polícia Civil do Pará, que teria aberto uma investigação a pedido da Promotoria, mas as instituições não se manifestaram.
Pastana diz que esperava receber dos órgãos de proteção à infância uma punição mais pedagógica. “Mas eles optaram pela medida mais drástica ao tirá-lo de mim.”.