“Sinal de alerta”, pondera Defensoria sobre Brasil virar réu por negar cirurgia a mulher trans

Texto: Danielle Valentim

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à Corte Interamericana de Direitos Humanos um caso, de 1997, que envolveu uma sequência de violações ao direito de acesso à cirurgia de afirmação de gênero. Para a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, o ato traz luz à luta pela garantia de direitos da população LGBTQIA+ e se destaca como um sinal de alerta para que casos, como o referido, não se repitam.

Conheça o caso — Era ano de 1997, quando Luiza Melinho buscou assistência médica no Hospital público da Unicamp, onde foi diagnosticada com depressão, tentativas de suicídio e “transtorno de identidade sexual”. Em 1998, se submeteu a uma intervenção inicial de afirmação de gênero no mesmo hospital, com a expectativa de completar o resto dos procedimentos.

O Conselho Federal de Medicina, então, estabeleceu algumas regras para a submissão àquelas cirurgias. Em 1999, um médico da Unicamp solicitou que fosse realizada uma avaliação psiquiátrica para o seu ingresso no programa de “adequação sexual” e, em 2001, foi cancelada no último momento uma cirurgia que seria realizada para modificar o aspecto da sua laringe, o que acentuou seu estado de depressão.

Em maio de 2001, o hospital alegou não estar em condições de realizar a cirurgia e a enviou a outro hospital, que não reconhecia o diagnóstico anterior, o que obrigaria Luiza Melinho a se submeter novamente a toda a exaustiva avaliação médica.

Em novembro de 2002, Luiza Melinho acionou a Unicamp por danos morais, e solicitou que a cirurgia fosse realizada ou que fosse paga em um hospital privado. Contudo, sua solicitação foi rechaçada em outubro de 2003. Em março de 2005, voltou a solicitar a cirurgia, porém não obteve resposta das autoridades. Em face da impossibilidade de conseguir a cirurgia em um hospital público, em 2005 obteve um empréstimo e se submeteu à cirurgia de afirmação de gênero em um hospital privado.

Em fevereiro de 2006, uma sentença desfavorável determinou que o Hospital da Unicamp não estava obrigado a realizar a cirurgia por ordem judicial, decisão da qual Melinho recorreu perante o Tribunal de Justiça de São Paulo. Em agosto de 2007, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiu que o Sistema Público de Saúde (SUS) devia incluir o procedimento de gênero. No entanto, o TJSP negou o recurso, em junho de 2008, ratificando a decisão anterior. O caso foi submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos em março de 2009.

A Defensoria — À frente do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, a defensora pública Thaísa Raquel de Albuquerque Defante, explica que embora mudanças no entendimento do Conselho Federal de Medicina tenham ocorrido, por exemplo, em relação a este procedimento, o caso aponta uma falha nos cuidados que deveria ter o estado brasileiro no atendimento a pessoa trans.

“A Comissão Interamericana traz no bojo da decisão enviada à Corte uma transversalidade com o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, considerando que ele analisa a questão do tempo. Afinal, o prazo de dois anos para quem já havia tentado suicídio era muito? Era pouco? Talvez seja pouco para uma pessoa ou muito para outra, no caso da Luiza, que já estava sofrendo há muito tempo, era muita coisa e isso não foi considerado pelo estado brasileiro, que deveria ter considerado as condições pessoais dela. A Luiza só pôde ter a plenitude da vida dela depois da cirurgia e isso não foi considerado”, destaca a coordenadora.

Ainda conforme a coordenadora, uma possível condenação do estado brasileiro pela corte interamericana é um sinal muito negativo. É um sinal de que não existiu — naquele caso —, a devida observância daqueles direitos.

“Para se ter uma ideia a Lei Maria da Penha que hoje é conhecida como é, ela surgiu em razão de uma condenação do Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, então, este é um sinal de alerta para que outros casos como a Luiza Melinho não aconteçam e para ser dispensado o tratamento adequado, que merecem as pessoas trans, para poderem exercer em plenitude seu direito à privacidade, liberdade, felicidade, para poderem ser exatamente como são e como gostariam de ser, sem que haja violação ou dano como ocorreu no caso dela em razão do longo sofrimento por qual passou durante toda a tramitação do processo”, pondera a coordenadora.

A coordenadora destaca, ainda, a necessidade de se questionar a existência de mudanças efetivas em relação às pessoas trans.

“Realmente é de se perguntar como vem sendo dispensado — depois do caso Melinho —, o tratamento das pessoas trans, em relação as que buscam a questão hormonal, a questão de cirurgia […] Estão sendo entregues a contento? Será que existem outras Luizas? É necessária observância. Será que houve melhora em relação às pessoas trans ou continua o mesmo? Quantos estados são aptos a realizar a cirurgia de afirmação de gênero? Está na totalidade dos estados? São questionamentos que devemos fazer e observar por meio deste estudo de caso que está sob análise da corte interamericana dos direitos humanos”, finaliza a defensora.

A CIDH — A Comissão concluiu que o Estado não garantiu o acesso à saúde de Luiza Melinho em igualdade de condições, o que foi demonstrado por meio dos obstáculos para acessar a cirurgia solicitada, como a escassez de estabelecimentos capazes de realizá-la, a distância geográfica e as demoras no processo.

Ademais, considerou que houve uma falta de acesso equitativo aos serviços de saúde, especialmente dada a vulnerabilidade da vítima. Também se argumentou que as demoras judiciais afetaram a vida privada de Luiza Melinho e seu direito a definir sua identidade de gênero de maneira autônoma.

Quanto às garantias judiciais e à proteção judicial, a Comissão estabeleceu que houve uma demora injustificada nos cinco anos e meio de tramitação do caso, o que teve um impacto negativo na saúde física e mental de Luiza Melinho, o que incluiu tentativas de suicídio, depressão e ansiedade.

A Comissão recomendou à Corte Interamericana as seguintes medidas de reparação:

  1. Reparar integralmente as violações declaradas no relatório, incluindo uma indenização pelos danos ocasionados e o reembolso dos gastos médicos.
  2. Disponibilizar medidas de assistência em saúde física e mental necessárias para sua reabilitação.
  3. Adotar medidas para evitar que situações similares se repitam no futuro, o que deve incluir a eliminação dos obstáculos nos protocolos de saúde que tornem ineficiente a prestação da cirurgia de afirmação de gênero, a garantia de que os recursos promovidos pela via judicial relacionados a cirurgias de afirmação sejam decididos de modo célere e a promoção da capacitação do pessoal médico que trata das pessoas trans, não binárias e de gênero diverso para garantir o acesso imediato a serviços de saúde de maneira não discriminatória.
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