APEC que propõe o fim da escala 6×1 começou a tramitar na Câmara dos Deputados e tem mobilizado parlamentares de diferentes espectros políticos.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe o fim da escala 6×1 — ou seja, seis dias de trabalho com uma folga semanal — ganhou tração nos últimos dias e conseguiu ultrapassar o número de assinaturas necessárias para começar a tramitar na Câmara dos Deputados.
Com mais de 200 assinaturas — número que prossegue aumentando —, a PEC tem suporte bem distinto entre as bancadas partidárias do Congresso Nacional.
Em partidos como o Psol — partido da autora da PEC, Erika Hilton (SP) —, o PT, a Rede e o PCdoB, todos os deputados federais apoiaram a proposta, sendo inclusive os primeiros parlamentares a aderirem à PEC. Outros partidos de esquerda, como PV e PSB, também têm mais de 80% da bancada assinando apoio à medida.
Por outro lado, em partidos mais identificados com a direita, a adesão é baixa. Nenhum deputado federal do Novo assinou apoio à PEC, enquanto apenas 1 parlamentar do PL, maior bancada da Casa, aderiu ao projeto. Partidos como PP, Republicanos, PSDB e Podemos tiveram menos de 20% da bancada assinando apoio à proposição.
A diferença na postura das bancadas partidárias da Câmara dos Deputados reflete também uma posição histórica da esquerda e da direita brasileira em relação à pauta trabalhista. “É uma pauta muito cara e que está no DNA da própria esquerda”, resume Carlos Zacarias, professor do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia.
Coordenador do Politiza, grupo de pesquisa em História Política, dos Partidos e Movimentos Contemporâneos de Esquerda e Direita, ele relembra que partidos importantes da esquerda brasileira nasceram de movimentos de trabalhadores organizados, incluindo o PT.
“A esquerda se move por pautas que são relacionadas ao trabalho”, pontua. Por outro lado, continua ele, as siglas da direita “não surgiram para defender os trabalhadores, não surgiram de trabalhadores organizados”.
A cientista política e professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Luciana Santana, complementa: “eles estão muito focados na negociação, na relação dessa livre negociação entre o empregado e o patrão ou mesmo de empreendedorismo, das pessoas serem os próprios chefes. Mas a gente não teve nenhum movimento deles em defesa de direitos”, considera.
Afastamento ou atualização?
A construção histórica da esquerda e da direita brasileiras são ilustrativas das diferenças em relação a demandas trabalhistas, pontuam os cientistas políticos.
Um dos marcos citados por eles, quando se trata da esquerda, é a fundação do Partido dos Trabalhadores, impulsionado pelas greves do ABC Paulista, na década de 1980. A criação do PCB, em 1922, também é puxada por essa pauta, relembra Carlos Zacarias. “Ele também surgiu com o desejo, com o projeto de dirigir a classe trabalhadora no espírito da tomada do poder”, explica. “A esquerda surge, toda ela, no mundo do trabalho”.
Zacarias cita ainda luta anterior, iniciada ainda durante os anos de 1910 e 1920, cuja pressão popular exercida acabou resultando na Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, de 1943.
“Essas lutas chegam aos anos 1930 com essa feição que faz com que os governos adotem essa legislação trabalhista. De lá para cá, sucessivos governos tiveram que lidar com uma legislação que foi consolidada, que foi adotada e reconhecida pelos trabalhadores como uma legislação importante”, explica.
Luciana Santana aponta, no entanto, que existiu um “distanciamento” da pauta por parte da esquerda, em específico do PT, a partir da chegada do presidente Lula ao Palácio do Planalto, no início dos anos 2000.
“A esquerda, desde que assumiu o poder no governo federal em 2002, teve uma relação mais distanciada com vários movimentos, principalmente o movimento sindical. E a gente teve uma desmobilização muito grande em relação a várias temáticas”, argumenta.
Professor de Sociologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), Marcos Paulo Campos discorda que tenha havido um distanciamento entre a esquerda e a pauta trabalhista.
“Nós vivemos todas as consequências de uma reforma trabalhista do Governo (Michel) Temer, que aumentou a informalidade e criou novas formas de contrato de trabalho. Então, criou uma espécie de nova classe de trabalho que a esquerda teve dificuldade de encontrar uma forma de dialogar com ela, mas o desejo do diálogo e a tentativa de estabelecer foi permanente”.Marcos Paulo Campos
Professor da Uece e da UVA
Carlos Zacarias também fala sobre essa mudança nas relações de trabalho e como isso altera a relação com a esquerda e esse campo. “Evidente que o trabalho vem sendo precarizado, vem ganhando outras formas e os processos de reestruturação produtiva impactaram no mundo do trabalho, repercutindo na própria organização dos trabalhadores e, nesse sentido, na forma como a esquerda representava esses trabalhadores”, diz.
O debate do fim da escala 6×1 é indicado como uma oportunidade de retomar esse diálogo, principalmente por ter sido encabeçado por lideranças políticas da esquerda.
A proposta teve início por mobilização do movimento VAT (Vida Além do Trabalho), liderada por Rick Azevedo, vereador eleito do Rio de Janeiro e o mais votado do Psol nas eleições de 2024 no Brasil. No Congresso, a PEC irá tramitar sob autoria da deputada federal Erika Hilton, também do Psol.
“É uma possibilidade que as esquerdas têm de pautar o debate público de forma ampla e não atendendo apenas aqueles que são alinhados ou podem, em algum momento, ser aliados da esquerda, porque a grande maioria das pessoas são trabalhadoras, que estão nessa jornada exaustiva, com uma folga só semanal”, ressalta Luciana Santana.
As direitas e a pauta trabalhista
Os cientistas políticos ouvidos pelo PontoPoder pontuam que as siglas vinculadas à direita têm uma origem distinta dos partidos de esquerda.
“As direitas efetivamente se vinculam a esses projetos das minorias sociais que são as minorias que compõem a classe dominante, que é o alto empresariado do país, seja ele o rural ou urbano, nas suas diversas frações, e essas direitas, quando lidam com a pauta trabalhista, lidam no sentido de beneficiar os patrões”, defende Carlos Zacarias.
Um exemplo citado foi a fala do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que, antes de assumir a presidência da República, disse que trabalhadores precisariam escolher entre ter direitos ou emprego.
“O trabalhador terá que escolher entre mais direito e menos emprego, ou menos direito e mais emprego”, afirmou em entrevista ao Jornal Nacional, ainda como candidato em 2018. A abordagem também é distinta, caminhando para a defesa, por exemplo, da livre negociação entre empregador e empregado ou sobre a liberdade para que os trabalhadores sejam ‘seus próprios chefes’ — processo definido como uberização do trabalho.
Parte dos parlamentares de direita, por exemplo, estão defendendo proposta de autoria do deputado Mauricio Marcon (Podemos-RS), intitulada por ele de PEC do Trabalho Flexível.
Nela, seria possível a diminuição da jornada de trabalho e a remuneração seria feita a partir das horas trabalhadas. A PEC do Fim da Escala 6×1 propõe a diminuição desta jornada, mas sem uma redução do valor pago ao trabalhador.
Nesse ponto, Marcos Paulo Campos pontua que deve existir uma divisão entre os parlamentares de partidos direitistas. “A direita, digamos, tradicional já está dando provas de que pode discutir o tema, que aceita discutir o tema”, explica.
“A direita tradicional, que foi a grande vitoriosa deste ano… O grande vitorioso desse ano não é nem o PT, nem o lulismo, nem o Bolsonaro. Os grandes vitoriosos são os partidos de centro-direita do Brasil. Portanto, eles precisam dar respostas a maioria que votou neles. Então eles não vão se posicionar, penso eu, imediatamente com muita repulsa ao projeto. Talvez eles entrem em cena para fazer modulações”, projeta o professor.
A direita bolsonarista, por outro lado, deve tentar se contrapor a essa pauta. “Ela deve buscar se diferenciar e talvez apontar para os trabalhadores o que eles podem perder”, diz. Contudo, completa Luciana Santana, essa deve ser uma discussão da qual a direita “não vai conseguir sair sem discutir efetivamente”.
“Hoje ela se sente emparedada. Até porque você tem muitas pesquisas que mostram que a redução da carga trabalhista, de trabalho, uma melhor adequação, produz mais efetividade, dá mais resultados e isso não significa que você gera mais desemprego, que você vai ampliar a carga tributária para os empresários, pelo contrário. (…) É uma pauta que impacta todas as pessoas, independente das ideologias, independente das posições políticas conservadoras ou mais progressistas. Então, é uma pauta que precisa ser discutida. Não tem como a direita se furtar dela”.Luciana Santana
Cientista política e professora da UFAL
Repercussões para 2026
A forte mobilização popular em torno da PEC do Fim da Escala 6×1 indica que o assunto pode ser relevante para o debate eleitoral de 2026. Luciana Santana, inclusive, avalia que é um tema que pode acabar favorecendo as forças esquerdistas.
“A depender de como a esquerda conseguir colocar isso para a opinião pública, conseguir emplacar com outros setores, envolver academia com estudos, com evidências, isso tem tudo para poder ser um canalizador pró-esquerda nas eleições de 2026”, pontua.
Ela aponta, contudo, o risco de um esfriamento da discussão, já que estamos próximos ao fim do ano legislativo — que ainda terá que discutir o Orçamento de 2025, o que costuma monopolizar a atenção dos parlamentares ao final do ano.
No ano que vem, os trabalhos no Congresso Nacional só retoma em fevereiro. Apesar do risco de esfriamento, Marcos Paulo Campos considera que isso pode acabar garantido o domínio dessa pauta sobre as eleições de 2026.
“Se não houver decisão, se o projeto não for discutido e ficar marinando, sendo levado em banho maria, se ficar indo de uma comissão para outra… Se isso não for resolvido, haverá uma ocupação do debate eleitoral por essa temática”, projeta. “Pode ser que esse tema ocupe a agenda de 2026 tranquilamente”.