Mulheres lideram endividamento, mas quitam mais dívidas que os homens

Novo crédito consignado para CLT amplia acesso ao financiamento: especialistas alertam para riscos

O endividamento das mulheres no Brasil não é apenas uma questão econômica, mas um reflexo de desigualdades estruturais de gênero. Pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC) revela que 76,9% das mulheres estavam endividadas em fevereiro deste ano, um percentual superior ao dos homens (76%). A disparidade, ainda que ligeiramente reduzida em relação a 2024, escancara um cenário que combina diferenças salariais persistentes, dificuldades no acesso ao crédito e uma sobrecarga desproporcional na gestão financeira dos lares.

Simultaneamente, a recente implementação do crédito consignado para trabalhadores do setor privado, com mais de 40 milhões de simulações registradas em apenas três dias, levanta questões sobre o impacto dessa nova modalidade no endividamento, especialmente entre as mulheres, que são as principais responsáveis pelas despesas familiares em lares de baixa renda.

A face feminina do endividamento

O fenômeno do endividamento feminino não é recente. Historicamente, as mulheres sempre tiveram um papel ativo na administração dos orçamentos domésticos, mesmo em períodos em que sua participação no mercado de trabalho era limitada. Contudo, a ampliação da independência financeira não veio acompanhada de condições mais justas de crédito e renda.

“Historicamente e até hoje, existe uma diferença salarial entre homens e mulheres. Isso vem diminuindo ao longo do tempo, mas ainda impacta o acesso ao crédito e a capacidade de lidar com as despesas diárias”, explica Felipe Tavares, economista-chefe da CNC.

O problema se agrava na base da pirâmide social: em 43% dos lares das classes D e E, as mulheres são as únicas responsáveis pelas despesas, de acordo com levantamento da Serasa. Além disso, 90% delas afirmam precisar equilibrar o trabalho remunerado com tarefas domésticas, consolidando a chamada “dupla jornada”.

A falta de acesso a crédito formal também impõe dificuldades para empreendedoras, que frequentemente recorrem à informalidade como forma de sobrevivência. “As mulheres empreendem, de maneira informal, com mais frequência. A informalidade é uma estratégia de subsistência”, destaca Merula Borges, especialista em finanças da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL).

Ainda assim, as mulheres demonstram maior preocupação com a organização do orçamento e a regularização de suas dívidas. Segundo a Serasa, elas fecham 25% mais acordos que os homens no Feirão Serasa Limpa Nome. Essa postura reflete um senso de responsabilidade financeira que, paradoxalmente, não se traduz em melhores condições de crédito.

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O crédito consignado e os riscos do superendividamento

Diante desse cenário, o novo crédito consignado para trabalhadores da iniciativa privada surge como uma alternativa que pode aliviar dificuldades financeiras, mas também apresenta riscos. Com a possibilidade de desconto direto em folha, essa linha de crédito pode ser mais acessível e menos onerosa do que outras opções de endividamento, como cartões de crédito e cheque especial.

Desde sua implementação na última sexta-feira (21), mais de 40 milhões de trabalhadores realizaram simulações da nova modalidade. Foram 4,5 milhões de propostas apresentadas e mais de 11 mil contratos firmados. O programa, que permite a trabalhadores CLT autorizarem o compartilhamento de dados do eSocial para obtenção de crédito, pode beneficiar até 47 milhões de pessoas.

Especialistas alertam, no entanto, para o perigo de comprometer uma parte significativa do salário com prestações descontadas automaticamente. O crédito consignado, que já é uma realidade para aposentados e servidores públicos, muitas vezes resulta em um endividamento prolongado e de difícil reversão.

“Ter dívidas não é algo ruim. Ter dívidas ruins é algo ruim”, adverte Felipe Tavares. A chave para um uso responsável do crédito está na análise criteriosa das condições oferecidas, evitando taxas abusivas e encargos desnecessários.

Educação financeira e políticas públicas

A alta taxa de endividamento feminino e a adesão massiva ao novo crédito consignado evidenciam a urgência de políticas públicas voltadas para a educação financeira e a equidade de gênero no acesso ao crédito.

A economista Tamires Castro reforça a importância do planejamento financeiro para evitar armadilhas do endividamento: “A gente precisa ter clareza de tudo que ganha e de tudo que gasta. É essencial entender o que são despesas fixas inegociáveis e quais gastos podem ser ajustados para evitar o endividamento excessivo”.

A regulação do mercado de crédito também precisa ser aprimorada para garantir que as mulheres tenham condições mais justas de financiamento, especialmente as que empreendem ou chefiam famílias. A aprovação da Lei do Superendividamento em 2021 foi um passo importante, ao estabelecer limites para juros abusivos e incentivar a renegociação de débitos. No entanto, medidas mais amplas são necessárias para reverter o quadro de desigualdade que ainda marca a relação das mulheres com o sistema financeiro.

A crescente preocupação com a sustentabilidade das finanças pessoais indica que, mais do que nunca, é preciso ampliar o acesso ao crédito sem agravar a vulnerabilidade econômica de milhões de brasileiras. No fim das contas, garantir a autonomia financeira das mulheres não é apenas uma questão econômica—é um passo essencial para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

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