Apesar de leis e políticas públicas, agressões aumentam e refletem machismo estrutural, desigualdade racial e impunidade
A violência contra a mulher segue um padrão brutal e repetitivo no Brasil. Os números não mentem: em 2023, 4.395 mulheres foram atendidas na rede de saúde após agressões não letais por armas de fogo, sendo que 35% já haviam sofrido violência doméstica antes. O dado, revelado pelo Instituto Sou da Paz, escancara uma realidade perversa: mesmo diante de registros prévios de agressões, muitas dessas mulheres não receberam proteção suficiente para evitar ataques futuros. O sistema falha, e as consequências são fatais.
Ao longo da última década, o Brasil tem visto crescer o número de assassinatos de mulheres por armas de fogo, que seguem como o principal meio de feminicídio no país, contabilizando cerca de 2.000 vítimas ao ano. A impunidade, aliada ao acesso facilitado às armas e à demora na concessão de medidas protetivas, mantém o ciclo de violência ativo. A história de Elaine Domenes de Castro, morta a tiros pelo ex-namorado após sucessivas ameaças, é mais um capítulo dessa tragédia anunciada. Ela denunciou, pediu medida protetiva, tentou escapar — mas foi assassinada na porta de casa.
O gargalo da proteção: entre denúncias e omissões
A legislação brasileira prevê que homens acusados de violência doméstica tenham suas armas apreendidas, caso possuam porte. Mas, como explica Cristina Neme, coordenadora do Instituto Sou da Paz, essa regra nem sempre é aplicada de forma eficaz: “O policial que atender a ocorrência tem que seguir um protocolo e fazer uma série de perguntas, entre elas, se o agressor tem porte de arma. Se tiver, o caso tem que ser encaminhado para o Judiciário que determina a apreensão.” No entanto, a prática não acompanha a teoria.
As falhas no Judiciário contribuem para a permanência dos riscos: enquanto o número de registros de violência contra a mulher cresce, as medidas protetivas não acompanham essa escalada. Em 2023, foram cerca de 500 mil decisões desse tipo, um volume ainda insuficiente para conter a alta dos casos.
O levantamento do Sou da Paz revela, ainda, que em 6.900 episódios de violência armada contra mulheres, outras formas de abuso também estavam presentes:
– 52,8% sofreram agressão física,
– 22,2% enfrentaram violência psicológica,
– 13,8% foram vítimas de violência sexual.
A interseccionalidade das violências mostra que nenhuma agressão ocorre isoladamente, e que o padrão de brutalidade muitas vezes começa com ameaças, avança para agressões físicas e culmina em feminicídio.
Domingos de terror: a violência tem dia e horário
Se a violência contra as mulheres é cotidiana, há um padrão preocupante: o domingo à noite desponta como o período de maior incidência de crimes de gênero em São Paulo. Segundo análise de 101 mil boletins de ocorrência registrados em 2023, os ataques aumentam nos finais de semana, especialmente à noite, refletindo o aumento do consumo de álcool e drogas e o maior convívio entre vítimas e agressores.
A faixa etária mais atingida é a de 25 a 45 anos, concentrando 54.750 casos. Entre os crimes mais frequentes, destacam-se:
– Ameaça,
– Injúria,
– Lesão corporal.
Os dados ainda mostram que 81% das vítimas tinham algum tipo de relação amorosa com seus agressores, reforçando que o perigo, para muitas mulheres, não está nas ruas, mas dentro de suas próprias casas.
Maíra Recchia, presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da OAB-SP, explica que o problema vai além das agressões físicas: “Se temos leis para tudo, não é sinal de sucesso, mas de fracasso. Temos que ensinar para um homem que não pode tocar no corpo da mulher sem o consentimento, isso significa que falhamos na base.”
A violência de gênero não é um fenômeno isolado. Ela se insere em um contexto de desigualdade racial, social e territorial. As mulheres negras são as principais vítimas, com uma taxa de homicídios de 2,2 a cada 100 mil habitantes, enquanto a de mulheres brancas é de 1 a cada 100 mil. O risco se acentua nas regiões Norte e Nordeste, onde 63% dos feminicídios foram cometidos com armas de fogo em 2023, contra 36,9% no Sudeste.
A engrenagem da impunidade e a necessidade de mudança estrutural
Diante desse cenário, o Estado tem implementado medidas para ampliar o atendimento às vítimas. O governo paulista, por exemplo, aponta que a ampliação das políticas públicas levou ao aumento de denúncias, passando de 182 mil registros em 2023 para 191 mil em 2024. Algumas das iniciativas incluem:
– Criação de 162 Salas DDM 24 horas, anexadas a delegacias,
– Aplicativo SP Mulher Segura, para pedidos de ajuda emergenciais,
– Monitoramento de agressores com tornozeleira eletrônica.
Contudo, a ausência de um plano efetivo para frear a escalada da violência faz com que muitas dessas medidas tenham impacto limitado. Segundo a demógrafa Jackeline Romio, “o caráter interpessoal da violência de gênero dificulta sua erradicação, pois está ligado às relações desiguais de poder. A solução exige ações multissetoriais e transformação das normas sociais.”
Os números e os relatos deixam claro: não basta que leis existam, é preciso que sejam aplicadas com rigor e eficiência. A impunidade segue sendo um fator determinante para a persistência da violência contra as mulheres. Quando um agressor não é punido, ele se sente autorizado a repetir suas ações — e, muitas vezes, a escalada do abuso termina em feminicídio.
Para que a realidade mude, é necessário um esforço coletivo, que envolva não apenas o Estado, mas toda a sociedade. A cultura machista, que naturaliza agressões e submete mulheres a ciclos contínuos de violência, precisa ser desmantelada desde a base, nas escolas, no mercado de trabalho, nas políticas públicas e no próprio Judiciário. Como bem alerta Maíra Recchia: “Precisamos que a sociedade entenda que as mulheres têm direitos. Elas não são objetos de prazer ou de poder do gênero masculino.”
Enquanto esse entendimento não for amplamente assimilado e refletido nas ações do Estado e da sociedade, as estatísticas seguirão sangrando.