O passado como polígrafo

Grosseria é ousar impor condições como ‘só faço ao vivo, não confio na edição’
Reprodução

Gentil, o editor da Folha me convida a escrever nesta página: “Acho que você está sendo vítima de uma campanha”.

Faz sentido oferecer-me compensação, pois houve campanha, e foi desencadeada pelo UOL [portal que tem participação minoritária e indireta da Folha] a partir de colaboradores “cheerleaders” do Twitter, que cravaram o adjetivo “grosseiro” como início de seu título caça-clique. Mais honesto seria “jocoso” ou “irreverente”, mas talvez não fosse tão chamativo.

No início do programa “Manhattan Connection” de quarta-feira (14), Lucas Mendes perguntou-me sobre convidados que não vão ao programa, como ocorre quando ele convida Lula e Bolsonaro. Na resposta, comentei das condições que, da prisão, Lula fixou ao manifestar seu desejo de participar de um “Conversa com Bial”. O ex-presidente disse que queria falar para mim, mas só se fosse ao vivo, pois não tinha confiança na minha edição. Conheço Lula há 40 anos, já o entrevistei algumas vezes, apenas uma ao vivo, quando fez suas primeiras declarações como presidente eleito, ao “Fantástico”, em 2002.

Enquanto presidente, concedeu-me duas entrevistas, sem fazer nenhum reparo à edição.

Qualquer entrevista pressupõe uma relação mínima de confiança. Grosseria é pressupor malícia e ousar impor condições como “só faço ao vivo, não confio na edição”.

O “Conversa com Bial” recebeu, recebe e continuará recebendo convidados de todos os matizes da esquerda e da direita. Nunca houve queixa. Colecionamos agradecimentos e elogios pela lealdade de nosso produto final.

E saibam agora que, em minha resposta bem-humorada à grosseria de Lula —“ao vivo, só com polígrafo”—, eu não estava apelando ao truísmo universal de que “políticos mentem”. Nem me referia a possíveis inverdades em discursos, declarações ou depoimentos do dono do PT. Tampouco invoquei a famosa entrevista em que Lula disse, como se falasse a verdade, que mentia mesmo para dramatizar estatísticas.

Não, o caso é pessoal. Lula sabe muito bem que já mentiu a meu respeito. A verdade está registrada, há provas e testemunhas.

Explico. No fim de 2005, o então presidente me recebeu no Palácio do Planalto para uma entrevista sobre o escândalo do mensalão, que àquela altura trazia a sombra do impeachment. Seus assessores André Singer e Clara Ant são testemunhas do que vou narrar. Além deles, os diretores do Jornalismo da Globo, Carlos Schroder e Ali Kamel, também estavam presentes. Não faz tanto tempo, repórteres eram recebidos no Palácio do Planalto para cobrar governantes sobre questões suspeitas.

A entrevista tocou em pontos sensíveis, como era da obrigação de entrevistador e entrevistado. Fiz perguntas incômodas, sempre de forma educada. Foi nessa entrevista que Lula disse que as denúncias tinham sido “uma facada nas costas”, que o PT errou e que para recuperar a credibilidade diante da sociedade, teria ainda que “sangrar muito”. Concluída a gravação, Lula nos convidou, afável, para conversar na sala de reuniões ao lado de seu gabinete. Num papo amigável, de mais de uma hora, pediu opiniões, e as ouviu como se fossem conselhos.

A edição foi ao ar no “Fantástico” em 1º de janeiro de 2006 e acabou representando o início da recuperação de Lula, que culminou com a sua reeleição.

Oito anos depois, diante de uma claque de blogueiros governistas, Lula inventou uma versão daquele encontro no Planalto. “Vocês estão lembrados da agressividade do Bial quando ele foi me entrevistar no Palácio? Eu poderia ter levantado e falado: ‘Cai fora do meu gabinete!’. Não. Eu falei: ‘Vou mostrar para esse cidadão que educação a gente não aprende na escola, a gente aprende no berço’”, disse o ex-presidente.

Diante dos ataques que Lula fez a mim e à imprensa, a ombudsman da Folha à época, Suzana Singer, tratou do assunto, reviu a entrevista e escreveu, em 13 de abril de 2014: “Na verdade, Pedro Bial comportou-se exemplarmente, como um jornalista com independência: fez perguntas bem fundamentadas e incômodas, deixou o entrevistado falar e rebateu o que julgou necessário”.

*Artigo publicado na seção “Tendências/Debates” da Folha de S.Paulo

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