Pagamento por foto dos olhos atraiu meio milhão de brasileiros

Ter o olho fotografado era um jeito de ganhar um dinheiro extra: cerca de R$ 600 em criptomoedas

A World, iniciativa que registra a íris de humanos para que ela sirva como uma “impressão digital” mais avançada, diz que seu objetivo é diferenciar pessoas de robôs cada vez mais convincentes.

No entanto, para muitos moradores de São Paulo, uma das cidades dos 18 países onde o projeto atua, ter o olho fotografado era um jeito de ganhar um dinheiro extra: cerca de R$ 600 em criptomoedas (na cotação da última sexta-feira, 24).

Mas, a partir deste sábado (25), o projeto não poderá mais remunerar quem participar dele, segundo determinação da Agência Nacional de Proteção de Dados (ANPD) divulgada um dia antes. O órgão é responsável por fiscalizar o cumprimento da Lei Geral da Proteção de Dados (LGPD).

A ANPD entende que o pagamento “pode interferir na livre manifestação de vontade dos indivíduos”.

E que essa interferência pode acontecer “especialmente em casos nos quais potencial vulnerabilidade e hipossuficiência (expressão jurídica que se refere à falta de condições financeiras) tornem ainda maior o peso do pagamento oferecido”.

Os registros da íris dispararam em São Paulo desde o fim do ano.

Antes focado no Itaim Bibi e nos Jardins, áreas nobres da capital, o escaneamento está agora em bairros como Brasilândia, Cidade Dutra e Cidade Líder, de renda mais baixa.

Muitas pessoas que o g1 entrevistou em pontos da periferia e também no Centro da cidade não sabiam explicar do que se tratava o protocolo World e nem se havia riscos.

Fiquei sabendo pelos meus amigos, que divulgaram um aplicativo que estava dando dinheiro. Eu questionei ‘De graça, assim?’ e confirmaram, ‘De graça’. Eu vim pelo dinheiro mesmo. Estou duro. Mas nada é de graça, né?

— Alex Rodrigo, de 38 anos, que se inscreveu em dezembro

Por ora, São Paulo é a única cidade no Brasil que participa. Mas a World tem planos de estender o projeto para outras regiões do país muito em breve disse Rodrigo Tozzi, gerente de operações da Tools for Humanity, em entrevista ao g1 no último dia 17.

A Tools é a empresa responsável pela operação da World, uma iniciativa que tem, entre seus fundadores, Sam Altman, da Open AI — a criadora do ChatGPT (saiba mais ao fim da reportagem).

Após a decisão da ANPD, a World disse que “está em conformidade com todas as leis e regulamentos do Brasil” e que “relatos imprecisos recentes e atividades nas mídias sociais resultaram em informações falsas para a ANPD”.

A disparada dos registros

O boca a boca e as redes sociais fizeram a ideia da oportunidade se espalhar. São muitas as postagens que tratam da “venda de uma foto da íris”, especialmente no TikTok.

A contagem de participantes parou, 10 dias atrás, em “mais de 400 mil pessoas”, e não é mais atualizada pela World. Eram 115 mil no começo de novembro passado, quando o projeto foi retomado em São Paulo depois de uma fase de testes, em 2023.

Movimento em ponto de cadastramento da íris em Cidade Líder, no extremo da Zona Leste de São Paulo, na penúltima semana de dezembro de 2024 — Foto: Victor Hugo Silva/g1

Movimento em ponto de cadastramento da íris em Cidade Líder, no extremo da Zona Leste de São Paulo, na penúltima semana de dezembro de 2024 — Foto: Victor Hugo Silva/g1

O crescimento meteórico acompanhou a velocidade da abertura de novos pontos de escaneamento: a rede saiu de 10 unidades, em novembro, para 51 na última sexta — um número que não parava de subir.

A adesão era facilitada pela localização estratégica dos pontos — perto de estações de metrô e trem, além de terminais de ônibus — e à expansão para os extremos da cidade. A maioria das unidades fica fora do Centro expandido da capital.

“Se a gente pensa numa cidade como São Paulo e o que a gente está propondo é criar uma ferramenta para toda a humanidade, a última coisa que a gente pode fazer é se limitar à Faria Lima”, disse Tozzi, se referindo à avenida que abriga bancos, startups e empresas de tecnologia.

O crescimento do projeto chamou a atenção da ANPD, que já tinha pedido explicações sobre o procedimento.

Na União Europeia, a autoridade de proteção de dados da Baviera, na Alemanha, determinou a exclusão de dados em todo o bloco, ainda que a World afirme que não fica com os registros das íris.

Segundo ela, o dado é codificado, fracionado e guardado por parceiros, incluindo universidades estrangeiras.

Especialistas em direito digital e tecnologia ouvidos pelo g1 levantaram preocupações com a clareza das informações que são dadas para os participantes — e se eles realmente estão cientes de como o projeto funciona. E sobre o que será feito com os dados no futuro.

Fácil de fazer, difícil de explicar

World atraiu atenção de milhares de pessoas ao dar criptomoedas em troca de registro da íris; muitos dos entrevistados pelo g1 não sabe explicar como funciona o projeto e nem se há riscos — Foto: Darlan Helder/g1

World atraiu atenção de milhares de pessoas ao dar criptomoedas em troca de registro da íris; muitos dos entrevistados pelo g1 não sabe explicar como funciona o projeto e nem se há riscos — Foto: Darlan Helder/g1

 Fazer o registro é relativamente simples:

  1. baixar o aplicativo World App, fazer um cadastro que não exige nenhuma informação pessoal e aceitar os termos e a política de privacidade;
  2. escolher local, data e horário para a verificação da íris;
  3. no ponto de verificação, assistir a um vídeo sobre inteligência artificial, privacidade e prova de humanidade;
  4. nesse local são tiradas três fotos (uma do rosto e uma de cada um dos olhos) com a Orb, câmera de alta definição que escaneia a íris;
  5. ainda no local, a pessoa precisa tirar uma selfie dentro do World App, com o celular dela conectado ao wi-fi do projeto; isso é para confirmar que é a dona do celular é a mesma que acabou de fazer as fotos na Orb

Até esta sexta-feira (24), o participante também deveria informar se desejava receber criptomoedas Worldcoin (o projeto tem sua própria moeda virtual).

O montante pode variar, mas, na última semana, eram 48 moedas (R$ 615, na cotação de 24 de janeiro); 20 moedas eram liberadas 24 horas após o escaneamento da íris. As outras 28 moedas são distribuídas mensalmente, ao longo de um ano.

Se o processo para fotografar a íris é rápido, entender o destino dos dados e as implicações disso é desafiador até para quem tem familiaridade com o tema.

A partir do registro da íris com a Orb, o que acontece, segundo Tozzi, da Tools for Humanity. é:

  1. as fotos viram um código numérico que é criptografado ainda na Orb;
  2. esse código é enviado para o celular da pessoa: ela passa a ser dona dessa “impressão digital”;
  3. o mesmo código é quebrado em vários fragmentos e é armazenado em diferentes servidores de “terceiros confiáveis”.
  4. por fim, ele é apagado da Orb.

A ideia da World de enviar os códigos fracionados para parceiros é descentralizar essa rede.

Os “terceiros confiáveis”, que recebem esses dados em pedaços, são as universidades de Berkeley (Estados Unidos) e Erlangen-Nürnberg (Alemanha) e a empresa inglesa de blockchain Nethermind.

“Cada fragmento é enviado para um servidor diferente de colaboradores. É impossível reconstruir esse código”, disse Tozzi. “Tudo isso é feito para garantir a privacidade, a segurança e que esse processo seja anônimo para todos os usuários”.

Rodrigo Tozzi, gerente de operações da Tools for Humanity, em entrevista ao g1 — Foto: Fábio Tito/g1

Rodrigo Tozzi, gerente de operações da Tools for Humanity, em entrevista ao g1 — Foto: Fábio Tito/g1

No entanto, se a World não retém os registros de íris, por que está investindo tanto e pagando para quem aceita participar?

O plano é ampliar cada vez mais essa rede de “impressões digitais”, ainda que fiquem guardadas (aos pedaços) com os parceiros da World.

No momento, a iniciativa não tem integração com aplicativos muito conhecidos.

Futuramente, se empresas, como bancos, e governos entenderem que é uma boa usar a íris como forma de diferenciar humanos e robôs, o projeto estará pronto para prestar o serviço, contando com um banco de dados bastante vasto (as pessoas que já têm suas íris registradas).

Por exemplo, se uma rede social decide incluir esse modelo como opção de entrada no perfil, em vez de login e senha, ela sabe que já existem milhares de usuários aptos, pelo protocolo World.

“A infraestrutura está sendo criada para que a solução exista antes da necessidade. Porque, quando a necessidade chegar, talvez seja muito tarde a gente querer construir algo do zero”, afirmou Tozzi.

Segundo a World, é possível contar com esse tipo de “impressão digital” para para evitar robôs em redes sociais, jogos e aplicativos de bancos e relacionamento, além de deepfakes em chamadas de vídeo e fraudes em programas sociais de governos.

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