Gozava de prestígio na Antiguidade a profissão de sonhador. É lamentável, e certamente uma perda para a humanidade, que milênios tenham decorrido antes que Freud reabilitasse a profissão. A especialidade hoje está reinstalada no mundo todo, atendendo pelo nome de psicanálise, tendo como pedra angular justamente a interpretação de sonhos.
Nas sagas portentosas dos sonhadores da Antiguidade há dois que se destacam: Daniel na Babilônia e José no Egito, que são protagonistas de histórias registradas na Bíblia. A primeira passou-se durante o “Exílio na Babilônia”, que se tornaria uma alegoria de outras diásporas. Foi nesse sentido que Camões compôs suas famosas redondilhas “Sobolos rios que vão/por Babilônia me achei”, em que o expatriado chora as saudades da pátria distante, assunto igualmente da ópera de Verdi, Nabucco. O imperador Nabucodonosor foi visitado por sonhos, ou melhor, pesadelos, que não conseguia entender e para os quais recorreu ao auxílio dos especialistas. Reza a Bíblia: “Por isso o rei convocou os magos, os encantadores, os feiticeiros e os astrólogos para que lhe dissessem o que ele havia sonhado. “ Quem lhe deu a chave foi o cativo hebreu Daniel, futuro profeta maior, que era vidente e sonhador, ou seja, decifrador de sonhos.
Esse Daniel é aquele mesmo que foi atirado na cova dos leões por recusar-se a abjurar seu Deus, escapando miraculosamente. Reabilitado e coberto de honrarias, teve longa e profícua vida como conselheiro da corte. Ainda ocuparia o cargo durante o reinado de Belsazar, filho e herdeiro de Nabucodonosor, que presidiu ao célebre banquete em que a mão de Deus escreveu na parede uma profecia arrasadora, que logo se cumpriu, sendo Babilônia invadida e saqueada, e o rei executado. O “Festim de Belsazar” tornou-se igualmente uma alegoria, lembrada sempre que situação semelhante se coloca, e seria tema de uma renomada tela de Rembrandt (National Gallery, Londres).
A outra história se passa no Egito e comporta muito mais peripécias, possivelmente devido à exploração da personalidade de alta malandragem de José, o protagonista. Filho temporão e exaltado aos olhos dos pais acima da numerosa fratria, abusava do privilégio, despertando suas iras. Começa pelo manto multicor, presente do patriarca só para ele, que o ostentava ante os onze irmãos. Também alardeava seus sonhos, todos presunçosos, em que se pavoneava acima deles. Até que eles, fartos, venderam-no secretamente como escravo a uns mercadores que passavam.
Levado para o Egito, graças a seus talentos e inteligência subiu na vida até ser o primeiro funcionário da casa de um importante mordomo do faraó. Mas, caluniado pela esposa dele, acabou atirado nas masmorras do palácio.
Ali, passou a decifrar os sonhos dos outros prisioneiros, numa exibição de vidência que chegou aos ouvidos do faraó. Este, atormentado por pesadelos, mandou chamá-lo.
O faraó sonhou que sete novilhas, nédias e prósperas, eram devoradas por outras sete, famélicas e definhadas. Sonhou ainda que sete belas espigas de trigo eram devoradas por outras sete em mau estado. Vê-se que era o mesmo sonho, repetido com ligeira variação, e é daí que vem a expressão, ainda em uso, das “vacas magras”. O faraó chancelou o resultado, e José pôs-se em campo para abarrotar os celeiros do reino com víveres que pudessem suprir o período de penúria que se avizinhava. Logo José ocuparia o maior posto (abaixo do faraó) em todo o Egito, o de Intendente.
Com tanto sucesso, que não só o Egito escapou à fome, como ainda ajudou outros países. E foi assim que os irmãos de José, sem saber que se tratava dele, vieram pedir-lhe auxílio em alimentos, acarretando o final feliz da fábula, quando todo o clã se mudou para o Egito, inclusive o velho pai, que nunca se consolara da perda do filho favorito.
Quem se encantou com a saga de José foi Thomas Mann, que lhe consagrou nada menos que uma série de quatro romances – uma delícia de leitura.
Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP